terça-feira, 30 de setembro de 2008

a perspectiva da memória

No post que elucida o problema metafísico da identidade pessoal, sugeri que a perspectiva da memória -- atribuída frequentemente a Locke -- não nos leva muito longe. A ideia, recordemos, é a seguinte:
Necessariamente, a pessoa que existe em t é a mesma pessoa que existe em t' se, e apenas se, a primeira recorda-se de algumas experiências da segunda ou vice-versa.
Uma das razões mais simples para rejeitar a perspectiva da memória assenta num facto igualmente simples: a identidade é transitiva. Ou seja, se a é idêntico a b e b é idêntico a c, então a é idêntico a c.

Montemos agora um cenário que não é particularmente implausível: João de 2030 recorda-se de algumas experiências de João de 2000, João de 2000 também se recorda de algumas experiências de João de 1970, mas João de 2030 não se recorda de nenhuma experiência de João de 1970.

O que implica a perspectiva da memória a respeito desta situação? Que João de 2030 é a mesma pessoa que João de 2000. Que João de 2000 é a mesma pessoa que João de 1970. E agora o desastre: que João de 2030 não é a mesma pessoa que João de 1970. Dada a transitividade da identidade, estas conclusões são inconsistentes, pelo que a perspectiva da memória tem de ser revista.

P.S. - Este argumento foi concebido por Thomas Reid (1710-1796), um dos críticos principais da perspectiva de Locke sobre a identidade pessoal.

domingo, 28 de setembro de 2008

pessoas

[A person] is a thinking intelligent being, that has reason and reflection, and can consider itself as itself, the same thinking thing in different times and places; which it does only by that consciousness which is inseparable from thinking, and, as it seems to me, essential to it: It being impossible for any one to perceive, without perceiving that he does perceive.
John Locke
An Essay Concerning Human Understanding

identidade pessoal

A questão filosófica mais saliente que se coloca a respeito da identidade pessoal é a das condições de persistência das pessoas, mais precisamente das pessoas humanas. (Pessoas sobrenaturais ou artificiais, se existirem ou vierem a existir, poderão ter condições de persistência muito diferentes das nossas.) O problema é saber, enfim, em que circunstâncias os seres como nós começam a existir, continuam a existir e deixam de existir. De uma teoria da identidade pessoal devemos esperar respostas para questões como as seguintes:
  • Continuaremos a existir se ficarmos em estado vegetativo persistente?
  • Será que um dia já fomos embriões ou fetos? Ou começámos a existir apenas quando o nosso organismo atingiu um nível mais avançado de desenvolvimento mental?
  • Se cada um dos nossos hemisférios cerebrais fosse transplantado para um corpo diferente, sobreviveríamos à mudança?
Uma formulação bastante comum (mas tendenciosa!) do problema da identidade pessoal é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a uma pessoa que existe noutro momento, t'?
Antes de corrigirmos a pergunta, há que esclarecê-la em dois aspectos.

O termo «pessoa», no seu sentido filosófico comum, designa um ser com certas capacidades mentais sofisticadas, como a racionalidade e a consciência de si. (Daí a possibilidade de existirem pessoas não-humanas, sem organismos Homo sapiens; e, já agora, a realidade de seres humanos que não são pessoas.)

O segundo esclarecimento é sobre a própria noção de identidade. A pergunta é acerca da identidade numérica entre pessoas, um conceito a distinguir do de identidade qualitativa. É fácil captar a diferença. Eu não sou qualitativamente idêntico ao miúdo de cinco anos que fui um dia, pois tenho agora muitas propriedades diferentes. Mas sou numericamente idêntico a esse miúdo: falar dele e falar de mim é falar de uma pessoa, e não de duas. E se, por uma suposição mais do que improvável, houvesse alguém exactamente como eu no que toca a propriedades intrínsecas (uma reprodução fiel, átomo a átomo, do meu organismo), teríamos o inverso: duas pessoas qualitativamente idênticas, mas numericamente distintas. (Caso contrário, não seriam duas.)

E basta de esclarecimentos, que os posts não se querem longos. Para responder à pergunta indicada, será preciso descrever as condições necessárias e suficientes da identidade das pessoas ao longo do tempo. Uma resposta possível, mas tão má que serve apenas como ilustração, é a seguinte:
Necessariamente, a pessoa que existe em t é a mesma pessoa que existe em t' se, e apenas se, a primeira recorda-se de algumas experiências da segunda ou vice-versa.
De acordo com esta perspectiva, a memória é o aspecto crucial da identidade pessoal. Por razões a explorar noutros posts, a teoria não funciona. Ainda assim, as perspectivas mais influentes sobre a identidade pessoal envolvem também o apelo a relações de carácter psicológico.

Mas por que razão, afinal, a pergunta é tendenciosa? Porque não contempla a possibilidade de existirmos sem ser pessoas. Por outras palavras, porque parece presumir que somos seres racionais e conscientes de si essencialmente. E isto é discutível. Se um dia fomos um embrião, por exemplo, ou se pudermos sobreviver num estado de inconsciência irreversível, então não somos pessoas essencialmente. Uma questão filosoficamente mais neutra, portanto, é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a algo que existe noutro momento, t'?
Mesmo esta pergunta é tendenciosa, já que envolve pressupostos filosoficamente controversos Isto, contudo, ficará para esclarecer noutra ocasião. Este post já vai monstruoso.

sábado, 27 de setembro de 2008

ornitologia de poltrona

Ao problema humeano da indução seguiram-se outros desafios filosóficos colocados pelo raciocínio indutivo. Um deles é o «paradoxo dos corvos», assim chamado por causa do exemplo com o qual se costuma explicá-lo. Foi descoberto pelo filósofo da ciência Carl G. Hempel (1905-1997).

Consideremos as seguintes hipóteses:
H1: Todos os corvos são negros
H2: Tudo o que não é negro não é um corvo.
A observação de corvos que sejam negros confirma H1, ou seja, aumenta a probabilidade de esta hipótese ser verdadeira. E que o que confirmará H2? Evidentemente, a observação de coisas que não sejam negras e não sejam corvos: chapéus amarelos, flores azuis, bandeiras verdes, planetas vermelhos. A lista seria interminável.

Ora, acontece que H1 e H2 são logicamente equivalentes: implicam-se mutuamente, são verdadeiras e falsas precisamente nas mesmas circunstâncias. Mesmo sem treino em lógica, é fácil perceber a equivalência: dizer que todos os corvos são negros é afirmar que todos os corvos estão no conjunto das coisas negras, ou seja, que se algo não está no conjunto das coisas negras não é um corvo, ou seja, que tudo o que não é negro não é um corvo.

Para gerar o paradoxo basta acrescentar um princípio que se afigura auto-evidente: se duas afirmações são equivalentes, tudo aquilo que confirmar uma confirmará a outra. E assim chegamos à conclusão estranhíssima de que a observação de chapéus amarelos, flores azuis, etc., confirma a hipótese de todos os corvos serem negros. Nelson Goodman fez o seguinte comentário a propósito desta conclusão:
A perspectiva de sermos capazes de investigar teorias ornitológicas sem nos expormos ao mau tempo é tão atraente que sabemos que tem de haver nela uma armadilha.
Note-se que este não é um paradoxo no sentido mais estrito do termo, já que o raciocínio de Hempel não produz nenhuma contradição. Simplesmente leva a um resultado que, à luz do senso comum, é quase tão absurdo como uma contradição. Mas qual será ao certo a armadilha escondida no paradoxo dos corvos?

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

entrevista a m. s. lourenço

É uma das entrevistas mais fascinantes que li alguma vez. M. S. Lourenço, especialista em filosofia da matemática e em Wittgenstein, revela a sua mente subtil e singular -- e a sua prosa admirável -- em resposta às questões de Miguel Tamen. A entrevista, muito longa, está disponível aqui, no site do entrevistado. Para tornar apetecível a sua leitura, reproduzo de seguida quatro breves passagens da mesma. Poderia ter escolhido dezenas de outras igualmente memoráveis, acreditem.

A propósito das suas aulas de lógica na Universidade de Lisboa:
Os alunos insurgiram-se essencialmente contra a ruptura de hábitos de pensamento e de exposição que as minhas aulas representavam. Os seus hábitos mentais tinham sido consolidados num estilo de pensamento por associação livre e tiveram a maior dificuldade em aceitar um estilo de pensamento por cadeias de inferências, que forçam uma conclusão. Como o foco da atenção muda constantemente na associação livre, a prática da associação livre é um estado flutuante de desconcentração e não é, por isso, condutiva a uma capacidade de concentração rigorosa. A generalidade dos alunos tinha por isso uma capacidade de concentração ínfima. Esta incapacidade de concentração era agravada ainda por uma reduzida capacidade de memorização (indispensável para fazer deduções), a qual era justificada por uma concepção tida por «progressista», segundo a qual memorizar é a negação da inteligência.
Sobre a sua dualidade de interesses (literários e filosóficos):
Um submarino é construído de acordo com o princípio do isolamento estanque dos espaços estratégicos, de modo a que a inundação de um não leve à inundação do espaço estratégico contíguo. Mas para mim foi confortante descobrir que não me foi possível organizar a minha mente como um submarino, e que a concepção dos dois compartimentos estanques da mente, como a do Reverendo Dogson [Lewis Carroll], em que podia esconder de um o que o outro podia saber, é uma fantasia narcisística de omnipotência, na qual uma pessoa se pode deleitar quando passeia, depois das aulas, entre as brumas de Christ Church Meadow, mas que a experiência posterior vem mostrar ser uma ilusão tão deformada como a do self-made man.
Sobre os tutoriais, em Oxford, com a filósofa Gertrude Anscombe:
Uma sessão tinha 50 a 60 minutos, muitas vezes seguida de chá; mas mesmo durante o chá o formato do diálogo usado no tutorial continuava, porque de modo algum se tratava de um momento de menor concentração ou diminuída perspicácia conceptual. As mesmas dificuldades repetiam-se, como quando, por exemplo, pegava numa chávena de chá e me perguntava:

"Would you trust Mr. Ballard's memory?"

Uma resposta adequada envolve reconhecer o passo relevante das Investigações Filosóficas, mas (e esta é a essência da atitude oxoniana) não se deve dizer que se reconheceu a alusão ao passo das Investigações (I, 342), uma vez que o tutor já sabe qual é; é suficiente saber inseri-la na organização da resposta.
A propósito de não ter gosto pela discussão pública:
A ideia básica é que neste momento da história da humanidade já se atingiu um estado de hipertrofia de interacção social. Não se deve por isso colaborar numa expansão desta hipertrofia, a qual se destina a legitimar os objectivos triviais da civilização de massas. Deve-se por isso renunciar a posições de leadership na já descontrolada hipertrofia da civilização de massas, excercendo a mencionada abstinência de participação em cliques ou lobbies, quaisquer que eles sejam.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

o problema da indução

O raciocínio indutivo é fonte de perplexidades tremendas. Uma delas, que remonta a David Hume, ficou conhecida por «o problema da indução».

Por vezes sugere-se que este problema decorre da falibilidade da indução. Detectamos uma regularidade empírica (cada F observado é G) e projectamo-la para novos casos, fazendo uma previsão (o próximo F será G) ou uma generalização (todos os F são G). Mas nada nos garante absolutamente que a previsão ocorra ou que não existam algures contra-exemplos à generalização. E onde poderemos encontrar tal garantia? Este seria (mas não é!) o problema da indução.

O «verdadeiro» problema da indução, aquele que Hume nos colocou, não resulta de um desconforto com o facto de o raciocínio indutivo não poder levar-nos além de conclusões «meramente» prováveis. (Isto parece-me tão problemático como o facto de os quadrados terem quatro lados: a indução é inerentemente falível; caso contrário, seria dedução válida.) O problema humeano é antes o de enfrentar esta conclusão devastadora: nunca temos a menor razão para acreditar em previsões ou generalizações indutivas. Ou seja, a indução não é apenas falível: é inteiramente infundada.

Como se chega a esta conclusão? Para começar, observando que qualquer raciocínio indutivo envolve o pressuposto de que a natureza é bastante estável, regular ou uniforme. Sem este pressuposto, não fará nenhum sentido projectar regularidades para novos casos. Ora, como justificar esta convicção na uniformidade da natureza? Podemos tentar fazê-lo apenas de duas formas: a priori ou recorrendo à experiência.

A primeira alternativa, sugere Hume, é inviável: não podemos saber a priori que a natureza é uniforme, dado que a suposição contrária é perfeitamente inteligível. Lamentavelmente, a segunda alternativa não parece mais promissora. Pois como podemos saber pela experiência que a natureza é uniforme? Neste ponto, pode ocorrer-nos apenas o seguinte: sabemo-lo porque temos observado a sua uniformidade. Mas dizer que a natureza é uniforme porque temos observado muitos exemplos de uniformidade natural é fazer uma projecção indutiva. E assim precipitámo-nos numa circularidade para a qual não se vê saída: tentámos justificar o raciocínio indutivo através de uma inferência indutiva.

O que segue daqui? Que o pressuposto da uniformidade da natureza é injustificável. Que, portanto, toda a indução assenta num pressuposto injustificável. Que, por isso, também as conclusões dos argumentos indutivos são inteiramente injustificáveis. E assim o facto de o pão ter alimentado até hoje não oferece a menor razão para acreditar que continuará a alimentar amanhã. E o facto de os objectos terem obedecido até hoje a tais e tais leis da física não torna minimamente provável que continuem a comportar-se assim. Etc. O problema da indução é o desafio de fugir a este raciocínio formidável, que parece abalar o senso comum com um cepticismo impiedoso.

glossário: dedução

Um raciocínio dedutivamente válido tem esta característica: se (e importa nunca esquecer este «se») todas as suas premissas forem verdadeiras, a conclusão será verdadeira. É impossível (e não apenas improvável) um argumento dedutivamente válido ter apenas premissas verdadeiras e, ainda assim, uma conclusão falsa. O exemplo estafadíssimo é o seguinte:
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Um exemplo como este tem a desvantagem de alimentar a ilusão de que a validade dedutiva é algo bastante fácil de determinar. Nem sempre é. Na verdade, as pessoas enganam-se sistematicamente a raciocinar de forma dedutiva. Segundo alguns estudos empíricos, mesmo depois de estudar lógica continuam a cometer erros bastante grosseiros com a mesma frequência, ou quase. (A selecção natural moldou os nossos cérebros para caçar, e não para determinar o que se segue necessariamente de quê.)

Note-se que nem todos os argumentos dedutivamente inválidos merecem o balde do lixo. Alguns deles poderão ser, por exemplo, boas generalizações ou previsões indutivas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

o mundo à beira do fim

Certo dia, o construtor Trurl concebeu uma máquina que podia criar tudo o que começasse por n. Quando ficou pronta experimentou-a, ordenando-lhe que fizesse novelos, depois nanquim e nanzuque, o que ela fez, e de seguida juntou tudo a narguilés cheios de nepente e de muitos outros narcóticos. A máquina executou as suas instruções à risca. Como não tinha ainda a certeza absoluta de que ela funcionava bem, Trurl fê-la produzir, uma coisa após outra, nimbos, nós, núcleos, neutrões, nafta, narizes, náiades e natrium. Ela não conseguiu cumprir esta última ordem, e Trurl, consideravelmente irritado, exigiu uma explicação.
Stanislaw Lem
«Como o Mundo Foi Salvo»

Este pequeno conto do livro The Cyberiad (1967) continua aqui, numa tradução que fiz há cerca de um ano. E deu um trabalho dos diabos, como não será difícil adivinhar.

sábado, 20 de setembro de 2008

o fim do mundo


O argumento delineado no post «o fim dos mundos» assemelha-se ao doomsday argument. Este argumento do «dia do juízo final» foi concebido inicialmente pelo cosmólogo Brandon Carter e desenvolvido pelo filósofo John Leslie, que há dez anos o discutiu com grande pormenor no livro The End of the World.

A conclusão do argumento de Carter e Leslie é apenas esta: é muitíssimo provável que a humanidade esteja à beira da extinção. Para captarmos o mínimo essencial do raciocínio doomsday, basta recordar esta experiência mental e apreciar dois cenários possíveis.

Suponha-se -- é este o primeiro cenário -- que a espécie humana continuará a existir durante milhares de séculos com a sua dimensão actual ou, talvez, com uma dimensão muito maior, caso se propague pela galáxia. Sob este cenário, ocupamos uma posição extraordinária na história da humanidade: contamo-nos, digamos, entre os primeiros 0.01% dos seres humanos.

Passemos ao segundo cenário: vamos extinguir-nos muito em breve. Este cenário sombrio, pelo contrário, deixa-nos numa posição bastante aborrecida. Pois 10% dos seres humanos que existiram até agora estão vivos actualmente. Sendo assim, se a humanidade se extinguir muito em breve, contamo-nos entre os últimos 10% dos membros da população humana, o que pouco tem de surpreendente. Um cenário deste género afigura-se, então, muito mais provável do que um cenário optimista.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

o fazedor de estrelas

Muitos destes primeiros universos não eram espaciais, mas não deixavam por isso de ser físicos. E entre estes universos sem espaço não eram poucos os que tinham uma natureza «musical»: o espaço era estranhamente representado por uma dimensão correspondente à altura musical, que abarcava miríades de diferenças tonais. As criaturas apresentavam-se como complexos padrões e ritmos de caracteres tonais. Podiam mover os seus corpos tonais na dimensão da altura e, por vezes, em dimensões humanamente inconcebíveis. O corpo de uma criatura era um padrão tonal mais ou menos constante, com o grau de flexibilidade e a ligeira mutabilidade de um corpo humano. Também podiam atravessar outros corpos vivos na dimensão da altura, à semelhança das ondas que se entrecruzam num lago. Todavia, ainda que estes seres pudessem passar tranquilamente pelos outros, também podiam lutar e danificar os seus tecidos tonais. Na verdade, alguns viviam devorando os outros, pois os seres mais complexos precisavam de integrar nos seus próprios padrões vitais os padrões mais simples que se espalhavam pelo cosmos, resultando directamente do poder criativo do Fazedor de Estrelas. As criaturas inteligentes podiam manipular, em função dos seus próprios fins, elementos que arrancavam do ambiente tonal fixo, construindo assim artefactos com um padrão tonal. Alguns eram usados como instrumentos para o desenvolvimento mais eficiente de actividades «agrícolas», o que permitia aumentar a abundância de comida natural. Os universos deste género, sem espaço, ainda que fossem incomparavelmente mais simples e magros do que o nosso próprio cosmos, eram suficientemente ricos para produzir sociedades que, além de «agricultura», tinham «artesanato» e até uma espécie de arte pura que combinava as propriedades da canção, da dança e da poesia. A filosofia, geralmente bastante pitagórica, surgiu pela primeira vez num cosmos deste género «musical».
Olaf Stapledon
Star Maker (1937)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

o fim dos mundos

Não pude, de forma alguma, fazer aqui justiça ao poder explicativo do realismo modal. Isso seria coisa bastante descabida num blog. Fiquei-me, pois, por um único exemplo. Mas, felizmente, não há virtude explicativa capaz de salvar esta teoria que, além de inspirar a maior repugnância ao senso comum, parece ter corolários práticos e epistémicos pouco recomendáveis. E isto porque há uma razão tremendamente forte para crer na sua falsidade. (O que é um alívio, dado que nenhuma razão me faria acreditar na sua verdade.)

O mundo actual exibe um grau impressionante de ordem e regularidade. Os objectos físicos obedecem escrupulosamente a leis que conhecemos bastante bem, etc. Não vale a pena aprofundar o óbvio. O mundo actual, enfim, é como uma sala bastante bem arrumada, para usar uma imagem intuitivamente apelativa.

Exploremos a analogia. A sala, sem dúvida, poderia estar melhor arrumada. Ou seja, entre todas as disposições possíveis dos objectos que esta contém, algumas corresponderiam a um grau ainda maior de ordem ou regularidade. Mas muitas outras -- a vastíssima maioria das disposições possíveis, na verdade -- corresponderiam antes a um grau enorme de desorganização.

Recordando agora a experiência mental apresentada neste post, consideremos as seguintes hipóteses:
  1. Só a sala actual é real.
  2. Todas as salas possíveis são reais.
Dada a situação em que estamos, que hipótese merecerá o nosso assentimento? Evidentemente, a primeira. Se só a sala actual for real, nada será menos surpreendente do que o facto de estarmos nela. (É como tirar a bola vermelha se não houver nenhuma outra bola na tômbola.) Pelo contrário, se todas as salas possíveis forem reais, ficaremos numa posição extraordinária: havendo um enorme predomínio de salas caóticas, habitar uma das salas arrumadinhas envolve uma sorte incrível. (É como tirar a bola vermelha se existirem milhões e milhões de bolas brancas.)

Passemos, por fim, das salas aos mundos inteiros. Primeiro facto: o mundo actual é notavelmente regular. Segundo facto: entre todos os mundos possíveis capazes de admitir habitantes como nós, aqueles que são muito irregulares predominam de forma esmagadora em relação aos que têm um grau de regularidade semelhante ou superior ao nosso. Nestas circunstâncias, a hipótese do realismo modal coloca-nos numa posição ridiculamente improvável: a de habitarmos um dos raros mundos com um grau de regularidade muito apreciável. Pelo contrário, a hipótese de que só o mundo actual é real torna a nossa posição absolutamente aborrecida: sim, habitamos este mundo muito arrumado e tal, mas o que tem isso de surpreendente? Rigorosamente nada, pois não há outro mundo para habitar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

o aborrecimento como verdade

Antes de a teoria de Lewis sucumbir a uma machadada fatal num dos próximos posts, uma experiência mental muito simples poderá facilitar a apreensão do golpe.

Imaginemos David, para dar um nome ao sujeito da experiência. Há uma tômbola de dimensão desconhecida que contém uma única bola vermelha e um determinado número de bolas brancas. A bola vermelha, e nenhuma outra, dá acesso ao Prémio.

David carrega num certo botão e uma bola sai da tômbola. Teve sorte: é a boa vermelha! Mas então aparece o Demónio e diz-lhe que só receberá o Prémio se responder correctamente à seguinte pergunta: quantas bolas havia na tômbola? Para lhe facilitar a vida, o Demónio diz-lhe que há apenas três hipóteses:

  1. Dez bolas;
  2. Um milhão de bolas;
  3. Um bilião de bolas.

David sorri. Afinal o Demónio não é particularmente maldoso, dado que 1 é, com toda a evidência, a resposta razoável. Pois tirar a bola vermelha se esta fizer parte de um conjunto de apenas dez bolas não envolve nenhuma sorte notável. Pelo contrário, a verdade de 2 deixaria David numa posição muito mais extraordinária: entre um milhão de bolas, ele teria conseguido a única vermelha! E a resposta 3, se verdadeira, faria de David um jogador absurdamente afortunado.

Em suma, a resposta 1 impõe-se, pois é aquela que torna menos surpreendente o facto de David ter tirado a bola vermelha. É essa a resposta que coloca David numa posição mais aborrecida, a partir da qual a sua conquista do Prémio pouco tem de impressionante. E as probabilidades compelem-nos a admitir o aborrecimento como verdade.

sábado, 13 de setembro de 2008

mundos enganadores

O realismo modal pode ser pouco convidativo não só pelas suas implicações práticas, mas também por conduzir a um cepticismo profundo. Se existirem todos os mundos que Lewis admite, sabemos muito menos do que julgamos saber.

No essencial, o problema é o seguinte: os mundos possíveis radicalmente enganadores parecem predominar em relação aos mundos «bem comportados» e, sendo assim, há uma grande probabilidade de habitarmos um dos primeiros. Talvez o problema se torne suficientemente claro se pensarmos no caso da indução. Suponha-se, e.g., que largo uma esfera de metal. Indutivamente, prevejo que caia no chão, provoque um certo ruído, rebole um pouco até se deter. Mas é possível que ocorram outras coisas. A esfera pode subir no ar. Explodir. Transformar-se num elefante. Gerar um buraco negro. Todas estas coisas, segundo Lewis, ocorrerão realmente num ou noutro mundo. As possibilidades são indefinidamente vastas. Para cada mundo em que a previsão indutiva se verifica, parece haver uma infinidade de mundos em que, das formas mais extraordinárias, as coisas não correm como se esperava. Ora, como poderei saber que não habito um desses mundos? De um modo mais geral: como poderemos confiar alguma vez na indução, se há tantos mundos em que o raciocínio indutivo leva à falsidade?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

glossário: indução

Ao raciocinar indutivamente, tomamos como ponto de partida uma regularidade registada em certos casos e projectamo-la para novos casos, fazendo uma generalização ou uma previsão. Por exemplo, observámos vários corvos negros (e nenhum corvo de outra cor). Indutivamente, podemos concluir que todos os corvos são negros (uma generalização) ou que o próximo corvo que observarmos também será negro (uma previsão).

A indução é inerentemente falível: a verdade das premissas nunca exclui a possibilidade lógica de a conclusão ser falsa. Contudo, supõe-se que o raciocínio indutivo, se realizado com cuidado, é suficientemente fiável para justificar a crença em generalizações ou previsões empíricas. Na verdade, confiamos na indução a todo o momento.

O termo «confirmação» usa-se para designar a relação entre as premissas e a conclusão de um raciocínio indutivo. Num argumento indutivamente forte, as premissas confirmam a conclusão num grau elevado: as primeiras, se verdadeiras, tornam muito provável que esta última também seja verdadeira.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

o grande afinador

Curiosamente, J. J. C. Smart (veja-se este post) mostra-se muito receptivo à ideia de uma pluralidade de universos no contexto da discussão sobre a existência de Deus.

Os físicos descobriram algo muito intrigante: o fine tuning de algumas das constantes fundamentais da natureza. Essas constantes têm valores aparentemente arbitrários e, se tivessem assumido valores um pouco diferentes, nunca teriam existido estrelas, planetas, vida, organismos capazes de pensar sobre estas coisas. Parece assim que o universo está minuciosamente afinado para permitir a existência de seres pensantes. Como explicar isto? Será que os valores das constantes se devem a um acaso bruto? Não há forma de repudiar esta possibilidade, sem dúvida, mas é sempre melhor evitar a crença em acasos extraordinários, se houver no horizonte uma explicação que os elimine. E parece haver uma explicação óbvia: um fine tuner, isto é, Deus ou algo lá perto. As constantes têm esses valores, e não outros, porque um agente concebeu o universo com o desígnio de o tornar habitável por seres conscientes.

Convenhamos que este é um herdeiro interessante do velho argumento do desígnio, o de William Paley, demolido por Hume e enterrado por Darwin. Interessante, sim, mas não arrasador. Muitos ateus, como Smart, sublinham que o acaso extraordinário e a agência divina não esgotam as alternativas. Imagine-se que há uma vastíssima pluralidade de universos e que os valores das constantes fundamentais variam aleatoriamente de universo para universo. Então em alguns deles (uma porção ínfima do todo, seguramente) as constantes assumem valores que permitem a existência de seres pensantes. Nada de espantoso. E ainda menos surpreendente: nós estamos num desses universos, pois como poderia ser de outro modo?

Onde poderemos, então, encontrar a melhor explicação do fine tuning? Na pluralidade de universos ou na agência divina? E, no primeiro caso, como deveremos entender esses universos? Como partes do mundo actual ou como mundos alternativos à maneira de Lewis? J. J. C. Smart e J. J. Haldane, um filósofo teísta, discutem o assunto neste livro brilhante.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

valor infinito

Dada uma hipótese muito menos incrível do que o realismo modal, a ética utilitarista (entre outras) vê-se perante uma dificuldade semelhante à indicada neste post. A hipótese é esta: o mundo actual (i.e., o nosso universo) contém quantidades infinitas de bem-estar e de «mal-estar». Isto será verdade se, por exemplo, o universo for habitado por um número infinito de seres sencientes, cujas experiências perfaçam um total infinito de prazer e um total infinito de dor. Nada de muito extraordinário, pelo que sabemos.

Esta hipótese deixa o utilitarista em maus lençóis. Afinal, se a nossa obrigação for promover ou maximizar o bem-estar, e se os prazeres e as dores forem infinitos, não importará o que fizermos. Por muito que nos esforcemos por fomentar o prazer e mitigar a dor, adoptando a perspectiva imparcial recomendada, o resultado será sempre o mesmo: prazer e dor sem fim. E assim a ética utilitarista levará à apatia moral.

De certo modo, não interessa que a hipótese seja verdadeira. O simples facto de o utilitarismo depender de que seja falsa parece afectar adversamente a sua credibilidade. Pois não é absurdo que as nossas obrigações, aqui e agora, dependam de um princípio ético que será defensável apenas se o universo não for infinito no valor e no desvalor que contém?

Não sei se esta dificuldade estranha será superável. Nick Bostrom discute-a aqui com muita profundidade, alcançando resultados pouco animadores.

sábado, 6 de setembro de 2008

pelo senso comum

J. J. C. Smart, o filósofo australiano que nasceu em 1920 e continua activo, defende uma «ética verdadeiramente universalista», mais precisamente o utilitarismo. E, na passagem reproduzida neste post, Smart sugere que o realismo modal seria o fim das nossas preocupações éticas, se advogarmos uma perspectiva como a utilitarista. Percebe-se porquê: se todos os mundos possíveis forem igualmente reais, a quantidade de bem-estar na «totalidade do ser», para usar uma expressão pretensiosa, permanecerá sempre inalterada, independentemente do que fizermos. Para fugir à indiferença ética, teríamos de dar atenção apenas ao bem-estar existente no nosso mundo, mas assim acabaríamos por subscrever uma ética «particularista», tão arbitrária e infundada como aquelas que nos dizem para nos preocuparmos apenas com a nossa nação, a nossa «raça» ou seja lá o que for.

Lewis responde de forma surpreendente: uma «ética verdadeira universalista» é, à semelhança do realismo modal, uma invenção de filósofos, uma perspectiva extremamente afastada do senso comum. Por isso, se o realismo modal nos força a não levar a sério uma ética desse género, faz-nos assim a ficar mais próximos do senso comum em matérias morais.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

glossário: utilitarismo

O utilitarismo é fundamentalmente uma teoria da obrigação moral. Na sua versão mais comum e influente, que se tornou conhecida por «utilitarismo dos actos», diz-nos que agir de forma acertada é apenas promover o bem-estar com toda a imparcialidade. De acordo com esta perspectiva, um acto é eticamente permissível se, e apenas se, não existe um acto alternativo cuja realização resulte num maior bem-estar.

Os chamados «utilitaristas das regras» fazem uma proposta diferente. A permissividade ética de um acto, afirmam, depende do seu acordo com o código moral correcto ou ideal -- e este consiste no conjunto de regras que, se colhesse uma aceitação social generalizada, resultaria num maior bem-estar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

o fim da ética

In fact on a realistic theory of possible worlds they are all going to exist anyway, and so a truly universalistic ethics collapses [...]. The only sort of ethics that a realistic theory of possible worlds would allow would be an ethics of the speaker's own world, and this would be a particularist ethics, much as an ethics that considered only the good of one's own tribe or nation.
J. J. C. Smart
Ethics, Persuasion and Truth

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

irreducibly egocentric wants

Será que o realismo modal sanciona de facto a indiferença? Não creio que uma resposta afirmativa possa constituir uma verdadeira objecção à teoria, uma razão para acreditar na sua falsidade; a indiferença poderá ser apenas um corolário perturbante da pluralidade de mundos. Ainda assim, Lewis nega que a sua ontologia tenha este corolário prático. Uma parte essencial da sua réplica encontra-se aqui:
We do have irreducibly egocentric wants. [...] Your egocentric desire to survive cannot be satisfied vicariously by the survival of your counterparts, and that is why you should not be indifferent to wether you live or die.

Likewise, I do not just idly want someone in some world to have written this book I have in mind; I want to have written it myself, and that is what motivates me to keep going.
Parece-me, no entanto, que muitos dos nossos «egocentric wants» (ou todos?) perdem o sentido sob a hipótese do realismo modal. Consideremos um exemplo como o segundo: quero que seja eu a escrever tal e tal livro. Mas se descobrir que, neste mundo, já alguém escreveu um livro precisamente como aquele que quero escrever, não fará sentido continuar a querer escrevê-lo. Por isso, se eu acreditar que, noutros mundos, o livro que quero escrever ficará escrito, independentemente do que fizer, também não fará sentido continuar a querer escrevê-lo.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

actualizar o mal

We may be moved by the joys and sorrows of a character known to be fictitious; but we do not really believe it is bad that evils occur in a nonactual possible world, or good that joys occur in a nonactual possible world, though of course it would be bad and good, respectively, for them to be actual. I think that our very strong disapproval of the deliberate actualizing of evils similarly reflects a belief in the absolutely, and not just relatively, special status of the actual as such. Indeed, if we ask, 'What is wrong with actualizing evils, since they will occur in some other possible world anyway if they don't occur in this one?', I doubt that the indexical theory can provide an answer which will be completely satisfying ethically.
Robert M. Adams
«Theories of Actuality»

glossário: indexical

Os indexicais são expressões linguísticas cuja referência varia em função do contexto. Por exemplo, os termos «hoje», «eu» ou «aqui» são indexicais, pois referem, respectivamente, dias, pessoas ou lugares diferentes, consoante o contexto em que são utilizados.

Nem sempre é óbvio que uma expressão se conte entre os indexicais. Controversamente, David Lewis defende que «actual» é um indexical: não há o mundo actual, sem mais, um mundo ontologicamente privilegiado por comparação com os mundos meramente possíveis; proferida por nós, a expressão «mundo actual» refere o mundo possível que habitamos, mas, quando usada por habitantes de outros mundos possíveis, essa mesma expressão refere o mundo que eles habitam.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

metafísica aplicada

Suponha-se que os argumentos favoráveis ao realismo modal são muitíssimo fortes e que, dotados da força psicológica de David Lewis, descobrimo-nos capazes de abraçar convicta e sinceramente esta teoria. E então? Isso faria alguma diferença na nossa vida? Ou deveria fazer? Há quem pense que sim, que faria uma diferença terrível: aceitar a ontologia lewisiana levar-nos-ia à pura indiferença. Ou deveria levar-nos.

Não é difícil perceber a preocupação que aqui se coloca. Imagine-se que estou indeciso entre duas possibilidades, não interessa quais. A decisão pode ser trivial ou dramática -- também não interessa. Que importa o que escolherei fazer? Nada! Seja qual for a minha escolha, haverá um mundo tão real como este em que a minha contraparte (mais precisamente, alguém tal e qual como eu até ao momento da decisão) escolherá o contrário.